quarta-feira, 30 de junho de 2010

Voa, canarinho, voa


Para minha total delícia, a próxima sexta-feira é mais um dos dias letivos engolidos pela Copa. A coisa fica mais orgástica pelo fato de a sexta ser o dia com mais tempos de aula. Engraçadamente, os alunos parecem "vingar-se" dos professores ao exclamar sua felicidade ante a proximidade do feriadão. Julgam que nosso maior objetivo na vida é estar diante do quadro, infernizando sua existência com gramáticas furiosas, exercícios estripadores e interpretações cruéis. Quão linda a inocência. Deixe-os pensar assim, ó mundo, que faz um bem danado aos meninos ser mocinhos de sua própria história e ter vilões que se dediquem apaixonada, exclusivamente à sua causa. Que decepção a dos alunos, se descobrem que o professor os trai com o cinema e a televisão! Quantos adultos lhes restarão para fazer oposição direita e honesta?

Sei que nunca torci com tanto calculismo pelo Brasil. Em 94, aluna de férias, acompanhei e sofri todos os jogos just because. Era brasileira, precisava mais? Em 98, mantive a lealdade, mas o sofrimento excessivo da final me impediu de ver qualquer jogo de 2002. Escaldei-me. Fiz beicinho (sem esperança de regresso). Em 2006, pensava só e tão-somente na viagem a Orlando – aliás, descobri há poucos dias que sequer me lembrava do país que sediou o campeonato. As únicas redondices que me interessavam, então, eram orelhinhas de Mickey; todo o resto do ano inexistiu. Agora, neste vuvuzelante 2010, sou professora do município e acompanho a tabela com a paixão da necessidade. Necessidade de folga. A paixão fria e estúpida de evitar um dia de correria, um dia de aborrecimento, um dia de gritaria e rouquidão. Quanto mais vuvuzela berrando brasileiramente, menos berro meu. Gritem, vuvuzelas, gritem. Pra frente, Brasil-sil-sil. Salve a seleção.

O dia (anotem:) o dia em que eu exclamar "Ah! que droga!" diante de um feriadão, minha alma profissional está salva. Seja onde for, estarei .

domingo, 27 de junho de 2010

Futuríssimo do presente


Hoje Guimarães Rosa, meu tão querido Joãozito, faria 102 anos. Não nasceu, aquele menino: aconteceu em Cordisburgo. E aconteceria em qualquer lugarzinho ou zão onde sua nave aterrisasse. Foi um fenômeno de gente apaixonada por saber coisas, por sabê-las em si mesmas, pelo saber em si mesmo. Era a definição do autodidata: o devorador de livros sim, mas de mundos também, todos os mundos que pudesse degustar. Amava descobrir. Fosse uma palavrita subitamente perfeita (ainda que inexistente), um causo regional, um nome sonoro de ave, um idioma inteiro. Joãozito era tanto ao mesmo tempo agora, era tantos presentes, que não poderia lhe caber um só futuro. O que você quer ser, Joãozito? Médico em um dos futuros, diplomata no outro, herói histórico no outro (muitos judeus lhe devem a vida), escritor (e que!) no outro. Além de profissões mais fofamente desassalariadas: Papai-Beleza, Vovô-Beleza.

Fico olhando meus alunos de município. Crianças, adolescentes. Se alguém lhes pergunta o que querem ser, dizem coisas glamurosas, não raro delirantes: atriz, cantor, jogador de futebol, modelo, esposa do Fiuk, namorado da Gisele. Por quê? Porque a (maior ou menor) impossibilidade de se chegar a uma dessas atividades os abona. Sonham, ou dizem sonhar, o impossível, porque isso lhes dá o "direito" de não lutar por ele. Sonham por hábito e comodismo, com o sonho de quem espera e não de quem busca.

Estudar para ser médico, advogado, engenheiro, professor, dentista? Tente usar esse argumento para convencê-los a fazer o exercício, a parar de dar bobeira, de tirar notas escarlatemente vergonhosas. Entre os alunos de hoje, se falta a famigerada "motivação" é porque também se perdeu, em algum momento, a única coisa que pode(ria) salvá-los: a paixão pelo futuro. O futuro dos alunos do presente é presentíssimo. Está no próximo fim de semana, no próximo jogo da Copa, na próxima calça da Gang, no capítulo da Malhação que começa daqui a pouquinho e essa aula está atrapalhando, humpf. Apaixonar-se pelo futuro de daqui a cinco, dez, quinze anos é coisa antiga. Pensar nos próximos dois bimestres? Coisa antiga. Bobagem. Carpe diem. O que, aliás (os coitadinhos não sabem), é realmente antiquíssimo.

Vamos ser otimistas para sobreviver: ainda não se fazem Joõezitos como futuramente.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Momento "quem me dera"


Ontem eu e Fábio fomos assistir a uma delícia politicamente incorretíssima, o colorido Kick-Ass – história de um sujeito que cisma de ser super-herói, apesar de ter tantos poderes quanto eu tenho conhecimento sobre as várias espécies de gimnospermas. Não, este post não é para dizer coisas inteligentes sobre o fato de nós (professores) também sermos heróis do cotidiano, etc. etc., e aquela adorável bobajada que só a Secretaria de Educação seria capaz de dizer. Longe disso. Saímos do filme ficcionalmente satisfeitos, mas por isso mesmo com a sensação de um buraquinho triste. Poderemos até escrever maravilhas sobre o longa em nosso blog conjunto, o Ultramuito (http://ultramuito.blogspot.com/), porém não teremos sido responsáveis pelo longa. Como o Fábio falou, às vezes cansa ficar sempre do lado de cá, na plateia, escrevendo sobre arte em vez de fazer arte. Recepcionando e digerindo o mundo em vez de acontecer nele. Tentando enfiar livros goela dos alunos abaixo, em vez de parir livros. Abocanhando histórias no lugar de fazê-las surgidas. Deixando-se ser, em vez de (definitivamente) o ser.

Kick-Ass vestiu um uniforme colorido, pegou a viola, botou na sacola e foi lutar. Simples assim. Por enquanto, nossos uniformes coloridos são o Ultramuito e o Quase Lugar. Mas tenho impressão de que ainda há muitas outras identidades secretas nossas andando por aí sem a gente.

domingo, 20 de junho de 2010

Penúltima flor do Lácio


Não sei os outros professores, mas eu, que me considero razoavelmente proficiente na língua pátria, que me viro em inglês a ponto de não morrer de fome em outro país, que acho sonoramente colorido o sotaque espanhol e o francês, me torno uma xenófoba em potencial quando falam comigo em educacionês. Como odeio essa penúltima flor do Lácio, incultíssima e horrenda. O educacionês nada mais é do que pegar coisas que poderiam soar muito cruas (ou muito simples – pra que simplicidade?) no bom vernáculo e transformá-las em formas tão vazias quanto incompreensíveis, mas que dão uma ideia de falar bonito.

Por exemplo: se o aluno precisa aprender a identificar sujeito e predicado, dizem algo como "ser capaz de aferir os componentes que estruturam sintaticamente a oração", ou outra aberração do gênero. Se precisa parar de querer assassinar os coleguinhas, ele "necessita de maiores substratos para o pleno convívio social". Se é um capeta que o professor quer defenestrar ou estripar a cada aula, o que estiver mais à mão no momento, ele "é um aluno com déficit de atenção e aproveitamento". Não nos dizem sequer o que trabalhar em cada série; aqueles odiosos "descritores" do município dão a entender que tudo está valendo, desde que seja Português. Murmuram algo vagamente "contextual" e "morfossintático" para os professores, lançam a bomba e saem correndo.

Para quem conseguir fazer a gentileza de me traduzir esse periclitante idioma, prometo que caço, mato e trago a cabeça do primeiro Projeto Político-Pedagógico que eu vir dando sopa por aí. Porque o PPP, sabemos, é como as madeleines de Proust: todos dizem que existe, mas ninguém nunca viu. In Portuguese, at least. De resto, mim não entender.

sábado, 19 de junho de 2010

Dois é demais


Lembro-me das aulas de História na escola: eu ficava intrigadíssima com a famigerada frase de Rousseau, "A sociedade corrompe o homem". Ué, mas a sociedade não é composta justamente de homens?, matutava eu inocentemente. Hoje entendo, como entendo, a máxima de meu camarada. Quem vive em sala de aula sabe disso. Podem dizer o que disserem em favor das salas cheias de alunos: que eles precisam aprender a conviver, que a classe é um microcosmo da sociedade, que as referências de um enriquecem o outro etc. Bullshit. Uma montoeira de alunos no mesmo recinto serve apenas a um propósito: enlouquecer o professor e, consequentemente, atrapalhar a aula o máximo possível. Dizer o contrário é imaginar que as aulas realmente se passam como na Malhação ou nas reportagens compromissadíssimas do RJ-TV, aquelas com os alunos fingindo que a câmera não está nem ali.

Pois é o seguinte: no mundo real, aula é uma guerra. Alunos são criaturas que fingem que o professor não está nem ali. Enquanto se tenta explicar a matéria para os quatro que olham o quadro atentamente, deve-se mandar oito guardarem as figurinhas da Copa, três pararem de correr em sala, dezessete cessarem de gritar como vuvuzelas, dois desistirem de se matar, dois desistirem de se beijar, nove largarem o celular e/ou o mp3, um me devolver aqui essa porcaria de apagador e, finalmente, um sair de sala e só voltar com papai ou mamãe, ou ambos. Individualmente, são doces criaturas. Provavelmente aprenderiam cada palavra da matéria. Você é até capaz de sentir ternura por algum deles, num bom dia. Cumprimentam na rua, exclamam um "professora!" feliz e parecem gente. Em sociedade escolar, regridem ao tempo das cavernas e fazem o professor ter fantasias com tiranossauros famintos. Famintos de menininhos, é claro. Que falta faz um bom bicho-papão.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

I have a dream


Anteontem foi Dia dos Namorados – sempre bem-vindamente maravilhoso. Depois de todas as comemorices, fiquei pensando (com invejita ligeira) naqueles que têm a boa fortuna de não direcionar os coraçõezinhos vermelhos apenas a seu amado ou amada. Conseguem olhar a segunda-feira na folhinha como quem olha o retrato de seu caríssimo, e suspirar desejosamente. Conseguem voltar do fim de semana sorrindo tão sinceramente quanto foram. Namoram seus trabalhos, seus empregos, com a mais apaixonada sem-vergonhice deste mundo.

Eu também queria, ah! como! queria sentir júbilo e não horror quando ouvisse a musiquinha final do Fantástico. Queria me esbaldar em aula com o mesmo prazer colorido que tenho com o texto. Queria ver os alunos progredindo com a mesma gula que me provoca o parágrafo que cresce, a frase que se define, a palavra que flerta com a outra e outra até finalmente desposar-se (de preferência com um termo "J. Pinto Fernandes", que não tinha entrado na história). Queria que a sala de aula desse a palpitação da sala de cinema, que o quadro-negro (agora branco) copiasse a telona em termos de frenesi. Que o coração tivesse, na escola, o mesmo espanto feliz que lhe dá ao ver uma combinação bem-sucedida de cores, o mesmo tesão que tem na florada das cerejeiras, o mesmo amor vermelhinho que lhe causa um seriado de investigação.

Eu tenho o sonho de poder ser, de propósito, o que sou sem querer. E ganhar pra isso.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Dia útil


Ontem não dei aulas municipais: dia de entrega do boletim. Dia, consequentemente, de conversar com os responsáveis presentes. É o momento mais produtivo de todos. Estar em sala de aula, sendo você mesma mãe e pai de todas aquelas criaturinhas, é ter adotado filhos de mais para conseguir ensinar decentemente. Mas fazer o contrário – instruir os pais sobre técnicas de eles, sim, serem professores de seus filhos em casa, espichando o trabalho que sozinhos não temos tempo ou condições de realizar – é batata. Não tem como a escola funcionar com professores pais. O bicho só principia a se ajeitar com pais professores. Nós, pobres de nós, só temos cinquenta minutos para dividir por uma turma de 30, 40 pestes, o que dá menos de dois minutos por peste. Os pais, se não têm o dia inteiro, têm ao menos o suficiente, o que nos falta. Têm também a possibilidade de individualização. Para nós, cada aluno é uma fração; para seus pais, ele é o todo.

Os professores não podemos (convençam-se!) estar ali para ensinar, educar e amar profundamente ao mesmo tempo. Podemos equlibrar os pratos do jeito que é possível, nos virando nos trinta (nos cinquenta). É claro que o responsável não foi instruído para dar aula, mas pode perfeitamente supervisioná-la, ainda que seja analfabeto: checar o exercício feito, o estojo completo, o caderno disponível, o livro cuidado. Cada pedacinho feito pelo pai é uma pedra que se desamarra de nosso pescoço. Assim como nossos jogadores canarinhos, aluno bom é aquele que está sempre em clima de concentração. Coached. O tempo todo. Do vestiário até o gol.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Ser Moisés


Como disse dois posts atrás, hoje faço 30 anos. Também dois dias atrás, saí para minipré-comemorar (ou pré-minicomemorar) com os meus mais próximos – namorado e irmã. O garçom que nos atendeu no restaurante, Moisés, me surpreendeu por ser o garçom. Além de fofissimamente simpático, parecia adivinhar pensamentos e necessidades. Considerei imaginariamente que meu suco estava demorando um pouco – e ele se aproximou para avisar que o suco logo iria sair, houve um pequeno atraso na cozinha. Meu Fábio ergueu o dedo para chamá-lo e pedir talheres, mas Moisés, só de ver o gesto, murmurou de longe: "talheres?" – e veio trazê-los sem precisarmos verbalizar o pedido. Lá pelas tantas, visitou a mesa apenas para perguntar, risonho, se tudo estava bem, se faltava alguma coisa. Quando nos preparávamos para sair, usei o giz de cera que ficava sobre a mesa (um mimo para as crianças desenharem) no rabisco de um agradecimento na toalha branca de papel. "Valeu, Moisés!" Moisés merecia. Dez por cento pagos com muito gosto.

Lembram que comentei o quanto gostaria de ser boa, uma das melhores, fizesse o que fizesse? Pois é. Eu gostaria, em suma, de ser Moisés em minha profissão. Qualquer que ela continue sendo ou venha a ser. Uma profissional que – o significado do nome vem bem a calhar – se "salve das águas" complacentes e medíocres em que tendemos a navegar, por puro cansaço. Onde quer que eu esteja, quer continue nas salas de aula ou não, só o que desejo é me salvar das águas, da maré, da ressaca de desânimo que tanto nos arrasta. Pelos próximos trinta, sessenta, noventa anos, eu quero ser Moisés. Se ainda por cima conseguir libertar alguém de alguma escravidão, mostrar algum caminho, abrir passagem pra alguém por algum Mar Vermelho, já dou minha vida por muito bem paga. Basta um. Aquele um.

domingo, 6 de junho de 2010

Aquele um


Em nome de meus colegas que têm muitos anos, muitas turmas a mais nas costas, um pedido: se você é aquele um que aproveitou alguma coisa das aulas, volte. Mesmo que dez, quinze, vinte anos depois, volte e diga a seu professor. Diga que o jeito de ele explicar sujeito e predicado, em um determinado dia, foi fundamental para que você finalmente entendesse a coisa. Diga que foi com ele que aprendeu a usar a vírgula. A gostar de escrever bilhete, carta, blog. A perceber que Machado nunca foi um escritor difícil. A aceitar que poesia nunca foi coisa de frutinha. Diga qualquer verdade positiva (mas tem de ser verdade): que ele controlava bem a turma, que ele era o que tinha mais paciência para explicar de novo, que ele fazia as melhores piadas, que inspirava respeito mas não metia medo, que você na época desejava tê-lo como pai (ou mãe), que você foi secretamente apaixonado por ele (ou ela), que as aulas dele ajudaram um pouco no concurso da Petrobras, que aquela questão do Enem você só acertou por causa dele. Diga, diga.

Acho que essa – quem já jogou o trintão Pac-Man sabe – é a única vitamininha que permite a nós, professores, aguentar mais um dia na carreira devorando nossos fantasmas.

sábado, 5 de junho de 2010

Ô balancê, balancê

Na segunda-feira, faço trinta anos. Na prática, nenhuma grande mudança: continuo sendo tão jovem como aos 25, 28 ou 29, e fisicamente é quase a mesmíssima coisa. No símbolo, porém, é a hora inevitável de pensar se não estou decepcionando a garotinha de 6, a menina de 15, a universitária de 22, a mulher de 26 que eu era. E se não estou decepcionando todos os adultos que foram professores dessas criaturas que já fui. Sempre boa aluna, eu sabia que eles deveriam ter esperanças secretas (ou nem tanto) a meu respeito. Eu também. Não é que eu já tenha pretendido ser médica, juíza, física nuclear ou presidente; pretendia ser professora mesmo – e a função pouco importa. Que eu desejasse ser gari ou vendedora de empadinhas, ninguém teria nada com isso. Mas o que eu queria, mesmo, era ser boa. Boa no que fizesse. De preferência, uma das melhores.

Não me sinto assim. Longe disso. Sinto-me, tenho-me certeza como uma professora medíocre. Esquecível, que faz apenas o que deve fazer, e mal; que não ensina nada importante a ninguém e não marca a vida de nenhum aluno. Isso me frustra tanto, tanto. Mas o profundo desgaste gerado pela sala de aula do ensino fundamental, o profundo ressentimento que sobra, embalofa nossas artérias profissionais de colesterol ruim. Pouco fica de energia para criar. Para mim e meus colegas. Ficamos professores que dão a matéria, não faltam, não se atrasam, cumprem os deveres. É necessário, mas insuficiente. Se minha antiga menina de 15 anos encontrasse sua versão mais velha esmagada de desânimo, provavelmente nem a cumprimentaria na rua. Teria (e tem) vergonha de não se ser inteiramente. Demorará muito a idade em que a gente começa a ser?

quinta-feira, 3 de junho de 2010

O quereres


Não é que eu não saiba o que fazer para controlar uma turma. Sempre se descobre, após uns dias de teste. Com a maior parte das turmas (isso confessado por eles mesmos), o lance é gritar. O máximo possível para a frequência humana. Claro que gostaríamos todos, com boa vontade pedagógica, de dar aulas harmônicas, ternas e felizes. Muito infelizmente, aluno é um bichinho com tendências sadomasoquistas. Simultâneas. Curte atormentar o professor "bonzinho" e parece gozar ao descobrir sua dominatrix. Sim, senhora professora. Grite, grite, mais, mais. Assim eu obedeço, assim eu respeito. E assim nos violentamos o ano inteiro – recíproca e individualmente: nossa garganta indo pro brejo em plena terça-feira, nosso amado aluno concordando em participar apenas em clima de quartel diário. Quanto mais pesado o coturno do mestre, mais silenciosa e produtiva a aula.

É esquizofrênico, doentio e real. Os professores sabemos que o afeto puro, indubitavelmente mais eficaz, é recusado dia após dia. Tem de vir misturado no leite, no grito, como o remedinho salvador que o doente insiste em cuspir. Cada aula, por conseguinte, é a guerra, com 30 ou 40 boquinhas que se recusam a tomar o remédio, 30 ou 40 adversários na intenção e no barulho. O problema é esse: quem se dispõe a ir 25 anos, cada aula, cada dia, com o mesmo querer dominador, a mesma vontade furiosa que te faz resolver cada birra, matar cada briga, bronquear cada caderno incompleto, cada material faltante, cada olhar voador? É um querer longo demais, necessariamente longo demais. Nossas aulas vivem em ritmo canino: 50 minutos equivalentes a 6 ou 7 horas. Gasto excessivo de calorias. Uma vida inteira de força contida em 50 minutos repletinhos de fraquezas transbordadas. Ser professor é muito, muito comprido.